MARIA E O DOGMA DA VIRGINDADE PERPÉTUA - UMA ANÁLISE EXEGÉTICA



Por Jefferson J. R. Rodrigues

INTRODUÇÃO

A doutrina da Virgindade perpétua de Maria, mãe de Jesus, tem sido alvo de acalorados debates entre protestantes e católicos no decorrer dos séculos. É claro que nem sempre foi assim. Durante o período medieval, onde a Igreja Católica era a detentora de todo poder interpretativo, a posição em favor da virgindade de Maria, mesmo depois do nascimento de Cristo, tornou-se perene entre teólogos escolásticos, sendo, inclusive, adotado por alguns reformadores influenciados pelos seus conceitos anteriormente aprendidos, valeram-se deste dogma para negar a possibilidade de que Maria tivesse tido relações sexuais com seu esposo e, posteriormente, tendo assim filhos e filhas como nos ensinam os Evangelhos.

Contudo, para o propósito deste breve artigo, queremos analisar exegeticamente um versículo que se encontra em Mateus 1.25, onde encontramos a seguinte afirmação: “e não a conheceu até que deu à luz seu filho, o primogênito; e pôs-lhe o nome de Jesus”. 

Assim, cabe a seguinte questão: o que este breve versículo nos ensina sobre o dogma da Virgindade perpétua de Maria?

I. UMA HERANÇA CONTRARIA A INTIMIDADE SEXUAL

Antes de tratarmos do texto propriamente dito, devemos fazer algumas ressalvas sobre a forma como a Igreja cristã, especialmente durante a Idade Média, tem tratado o tema relação sexual. É preciso destacar que durante os mais de 2000 anos de cristianismo este tema tem sido um tabu dentro da doutrina cristã. E quando se tratou sobre relação sexual no contexto doutrinário, regularmente se fez envolto por uma “áurea” de pecado. Somente nos últimos dois séculos é que se buscou um equilíbrio entre casamento, santidade e relação sexual. 

Esta má reputação em torno da intimidade sexual entre cônjuges se deve, em grande parte, pela forma como os primeiros teólogos cristãos apresentaram esta questão. Devemos ainda levar em consideração as dificuldades oriundas das perseguições imperiais nos primeiros 4 séculos da era cristã. Diante da iminente ameaça de morte dos cristãos e de seus familiares, ficou evidente para muitos líderes cristãos, inclusive para o apostolo Paulo (1 Co 7.32-40), que era muito melhor que os cristãos optassem por serem solteiros e castos, pois assim, estariam mais dispostos a se entregaram a morte pela causa de Cristo.

Além disso, cada vez mais respeitados intérpretes, como Irineu de Lion, Ambrósio, Jerônimo e outros, passaram a defender o celibato e a virgindade como sinal de pureza, sendo inclusive recomendada a abstinência sexual dentro do casamento. Esses homens viam na condição de Maria uma porta aberta para redenção da humanidade originada pelo “erro de Eva” no Éden. Assim, para Carlos A. Bezerra (2018, p.118), um dos grandes teólogos cristãos do século III, Irineu de Lion, seguiria esta mesma perspectiva pessimista quanto ao casamento e a relação sexual, por isso teria afirmado que “[...] a raça humana caiu no cativeiro do pecado e morte por conta de Eva, uma virgem, por isto só poderia haver um resgate da humanidade por meio de uma outra virgem, ou seja, Maria”. 

Igualmente a Irineu, vemos a opinião de Justino, o Mártir, exposto pelo professor de História Eclesiástica Giovanni Miegge (1962), em sua obra A virgem Maria: uma analise da doutrina mariana do Catolicismo. Segundo Justino, em sua obra Diálogo com Trifo, Eva seria responsável pela corrupção humana, pois “sendo virgem e incorrupta, Eva, tendo acolhido em si a palavra pronunciada pela serpente, deu à luz a desobediência”(JUSTINO apud MIEGGE, 1962, p.33); em contrapartida, Maria seria a vigem obediente que se manteve fiel ao chamado do Senhor manteve-se pura por toda a sua vida, afinal, “nasceu dela aquele por quem Deus destrói a serpente, bem como os anjos e homens semelhantes a ela, e livra da morte os que se arrependem dos seus maus feitos e creem”(idem, idem). 

Esta interpretação ganhará maior vislumbre por intermédio dos escritos de Agostinho de Hipona, que se tornou um ferrenho opositor de qualquer intimidade sexual, sendo um grande apologista da virgindade dos cristãos e honrando demasiadamente o papel de Maria como a Virgem pura e imaculada (BEZERRA, 2018). Assim, este pensamento antissexual e pró-abstinência, foi reproduzido por toda a Idade Média e marcou direta e indiretamente a mentalidade de teólogos e intérpretes das Escrituras que passaram a estabelecer dogmas pautados em suas crenças históricas mais do que naquilo que verdadeiramente as Escrituras nos dizem. Podemos afirmar que esta seria a gênese da doutrina da Virgindade Perpétua de Maria ratificada no ano 649, durante o Concílio de Latrão, pelo Papa Matinho I, e sendo reafirmada através da história do catolicismo. 

Porém, diante das afirmações conciliares destes teólogos medievais surge uma pergunta: Mas o que de fato as Escrituras nos dizem sobre esta questão? Faremos algumas ponderações que consideramos relevantes a seguir.

II. A CONDIÇÃO DE MARIA APÓS DO NASCIMENTO DE JESUS

Conforme já falamos anteriormente, não é nosso propósito ser exaustivo nas análises dos diversos textos que nos dão suporte a visão protestante de que Maria foi Virgem até o nascimento de Jesus, tendo, a partir de então, outros filhos e filhas (Mt 13.55,56). Contudo, analisaremos o texto de Mateus citado na introdução deste trabalho e faremos algumas ligações com outros textos que possam subsidiar nossa proposta. 

Ao analisarmos a perícope em que Mateus trata sobre o nascimento de Jesus (Mt 1.18-25) veremos uma sequência de eventos que culminarão na declaração de que José não “conheceu” Maria até o nascimento de Jesus. Ao nos determos no texto em destaque, veremos, em primeiro lugar, a descrição de que Maria era “desposada” com José quando ela recebeu a notícia de que seria mãe do Salvador (Mt 1.18). O termo “desposada” (gr. μνηστεύω/ mnesteuo) dentro da cultura judaica implicava dizer de que ambos eram noivos e que tinham assumido um compromisso matrimonial público, que duraria, em média, um ano até que houvesse a consumação do casamento, conforme nos apresenta o comentarista bíblico William Barclay (19?). 

Era esperado que José efetivasse seu enlace matrimonial tendo relações sexuais com sua esposa após o tempo de noivado. Caso houvesse uma quebra do acordo nupcial antes da efetivação do casamento - seja através de escolha pessoal, ou por atos como o adultério - seria necessário que houve um divórcio legal e público. Por isso, após José ser informado que sua noiva estava grávida, fruto de um suposto adultério, ele decide deixá-la secretamente, resguardando assim a honra pública da jovem Maria (Mt 1.19).

Nos versículos seguintes veremos (vv.20-24) a majestosa revelação do anjo do Senhor que aparece a José informando que a sua noiva não o havia traído, antes, ela fora agraciada com o precioso fruto do Espírito Santo, que seria o Salvador do mundo. A este menino deveria ser dado o nome de Jesus (Yeshua) e que este sinal cumpriria a profecia dita por Isaias de que “a virgem conceberá e dará à luz um filho [...]” (Mt 1.23). Diante de tudo o que José viu na revelação dada em sonho, não lhe restou outra opção a não ser continuar junto de sua noiva (v.24), assumindo um importantíssimo trabalho neste tão grande projeto Divino.

Outrossim, depois de apresentar todas estas informações e destacar como José foi obediente ao chamado do Senhor, Mateus agora aponta que a união matrimonial entre Maria e José se consumaria como era costume entre judeus. Mateus destaca de modo categórico que José recebeu Maria como sua mulher, porém, ele “não a conheceu até que deu à luz seu filho, o primogênito [...]” (Mt 1.25). 

1. Analisando o texto grego

O texto grego nos faz entender de modo mais claro o que está sendo apresentado neste breve versículo. Assim, de acordo com os manuscritos do Textus Receptus,  Mateus nos diz: “καὶ οὐκ ἐγίνωσκεν (eginosken) αὐτὴν ἕως (heos) οὗ ἔτεκεν τὸν υἱὸν αὐτῆς τὸν πρωτότοκον·”. Acreditamos ser interessante analisarmos o verbo “eginosken” e a preposição “heos”. Ao analisarmos o verbo eginosken perceberemos que sua forma lexical é “ginosko”, e que significa basicamente “descobri, saber, conhecer”. Contudo, tal verbo assume um caráter distinto quando usado dentro de um contexto que envolva homem e mulher, esposo e esposa. Neste caso, é comum a tradução que aponta para um hebraísmo que indica que “conhecer” trata-se de manter relação sexual, por isso James Strong (2002, p.1264) nos informa que o verbo “ginosko” pode indicar uma “expressão idiomática judaica para relação sexual entre homem e mulher”.  

Outro fato que precisamos analisar sobre a opção verbal usada pelo apóstolo ex-cobrador de impostos, é a respeito do tempo verbal do “ginosko”. Mateus apresentou tal verbo grego no tempo imperfeito, no modo indicativo, ficando expresso como “eginosken”. Segundo Mouce (2009, p.219) “o imperfeito expressa ação linear no tempo passado”, o que implica dizer que a ação praticada (não ter relação sexual) ocorreu de modo continuo, porém, num passado anterior ao fato indicado por Mateus: “o nascimento do filho”. Assim, a ação (não ter relação sexual) cessaria logo após Maria ter dado à luz, pois o verbo não indica que esta ação continuaria no tempo presente.

Por fim, devemos analisar o uso intencional da preposição “heos”. Para o léxico de Johannes Low e Eugene Nida (2019, p. 574) tal preposição é usada para expor uma extensão de tempo, neste caso, será uma “extensão de tempo contínua até se chegar a determinado ponto”. De igual forma, James Strong (2002, p. 1385) traduz  sucintamente esta preposição como “até, até que”. Podemos então perceber que a intenção do escritor era marcar um tempo específico para a cessação do ato proposto anteriormente, ou seja, de José não conhecer (ter relação sexual) sua esposa, Maria. Assim, em uma tradução linear do versículo chegamos a seguinte forma: “E não conheceu ela até que deu a luz ao filho dela o primogênito [...]”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante disso, chegamos à conclusão de que Mateus não tinha em mente ao escrever este texto a ideia de que Maria continuaria Virgem após o nascimento de Jesus. Tal ideia é confirmada através de outros textos expostos pelo próprio Mateus. Tais textos afirmam que após Jesus chegar a “sua pátria” e ensinar de modo maravilhoso na sinagoga, os que o ouviam afirmaram conhecer José, Maria e os irmãos de Jesus e suas irmãs (Mt 13.55,56), inclusive apresentado os nomes dos irmãos do Senhor, a saber: Tiago, José, Simão e Judas. É claro que alguns intérpretes justificam tal texto afirmando que na verdade esses são primos de Jesus, porém, este sentido parece extrapolar a pretensão do autor em destacar linearmente a família biológica de Cristo, como apresentado por Mateus.

Vemos com esta proposta que a ideia de que Maria não possuía outros filhos além de Jesus, e de que continuaria virgem perpetuamente, está ligada muito mais aos dogmas contrários a relação sexual, mesmo no casamento, do que em conformidade com as Escrituras e aquilo que os autores sacros, como Mateus, pretendiam ensinar aos seus ouvintes. Por fim, concluímos este trecho das Escrituras apontando nos traz uma possibilidade de tradução que torna mais evidente a ideia pretendida pelo autor Sacro. Assim, entendemos ser uma tradução possível da seguinte forma: “ E José não teve relação sexual com Maria até que deu a luz ao seu filho [...]”. Acreditamos que ao explicitar a ideia do hebraísmo “conhecer” e adaptar de modo dinâmico a construção do versículo, deixaremos mais claro aos leitores a real intenção de Mateus ao escrever tais palavras.

______________________

Sobre o autor: Jefferson J. R. Rodrigues é ministro do evangelho na AD do Aeroporto, em Teresina-PI. Mestrando em Teologia. Especialista em Interpretação bíblica. Bacharel em Teologia. Licenciado em História.  Escritor e professor de História e Teologia.

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

BEZERRA, Carlos A. A dessexualização da Igreja cristã: uma pesquisa histórica, hermenêutica e semântica do sexo. Revista Via Teológica, v. 19, N. 38, Jun/2018. pp. 11-52
CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo.v6. São Paulo: Hagnos, 2014. 
MAGGIE, Giovanni. A virgem Maria: uma análise da doutrina mariana do Catolicismo. São Paulo: Cultura Cristã, 1962.
LOUW, Johannes P.; NIDA, Eugene A. (ed.). Léxico grego-português do Novo Testamento baseados em domínios semânticos. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013.
MOUNCE, William D. Léxico analítico grego do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2017.
STRONG, James. Dicionário bíblico Strong. São Paulo: SBB, 2020


2 Comentários

  1. Muito exclarecedor. Obrigado. Deus abençoe

    ResponderExcluir
  2. Seu texto é esclarecedor. Fica claro como água de fonte que o Dogma da Virgindade Perpétua é uma ideia que alguns homens tiveram para iludir o público. Assim como a Assunção de Maria, alguns homens de vestido preto acharam por bem usar textos apócrifos para divulgarem uma ideia para acelerar a devoção à Maria. Ou seja, um monte de sofismas. Acredita quem não tem critérios.

    ResponderExcluir
Anterior Próxima

نموذج الاتصال